28.5.10

tao

Pra quê, bem te digo, já que estas palavras me saltam aos gritos: todas as vezes que escrevo é a urgência do transbordamento que invade ao contrário a minha cabeça, me salta nos dedos em palavras que não têm a coragem de escapar pela boca. O espaço do medo é o maior aconchego da covardia que cala, na boca, na sala, e o quarto acolchoado é o berço da escrita, indomada, torcida. Eu escrevo porque eu não falo. Eu escuto porque eu me calo diante do outro. Eu contenho até não caber mais, num cinismo de concordância e de paz, mas por dentro me sinto o lobo que a ovelha de fora tenta calar.

Quem é covarde, quem é corajoso? O que é certo e o que é errado? De onde vêm os limites do mundo? E por que eu os nego, apago, diluo? Nem bem sei como cheguei a esse ponto, mas encontro na liquefação dos conceitos uma paz decomposta, misteriosa, aprazível, que me aquieta e no entanto me frustra: porque quanto mais a tento escrever, mais a percebo indizível.

25.5.10

rumos e retornos

mais de um ano são vidas inteiras, mas de quantos anos se faz uma vida? o que delimita em vida o que é vida, o que é inteiro, o que é singular ou o que é múltiplo? múltiplos, mesmo, são os conceitos que mais é embaralham a percepção, essa, sim, simples e única (originalmente, eu quero dizer).

esse quase um ano me remete em flashback a tantos lugares, lares, raízes, tropeços, delírios, risadas, tombões, planagens, paixões, e em meio a tudo isso aprendi em vaivém o que fica e o que se esvai. aprender a viver é bem duro; aprender a ser adulto em uma cidade grande que te engole é perturbadoramente satisfatório, mas inconcebivelmente adjetivado como tal, não fosse o grande desapego que a enxurrada de apegos te enforca a engolir. é assim, mesmo: uma mão que enforca enquanto a outra empurra, garganta abaixo, algo que não se quer engolir mas é extremamente necessário. um jogo de espelhos enganosos é a vida.

eu vivi vários eus que me ensinaram a ser outro. joguei fora nas beiras de estradas o que jurava serem peles, confirmadas agora apenas plumas sem graça. eu vivi vários dramas que hoje parecem levemente aprazíveis se insinuados num pôster poeirento de filme em cartaz naqueles cinemas cult sujos do centro velho, entre o anhangabaú e a república. comungo agora com os idosos nostálgicos mastigando intermináveis ventos de passado nordestino na praça da sé. mas não sou, como eles, seco ou escapista. viver ao quadrado durante um ano me ensinou uma sobriedade cúbica:

fiz amigos, estreitei laços, abandonei destinos, amei dolorosamente, interroguei bifurcações, flertei com intuições e cá estou, quem diria!, "adulto", aquilo que só enxergava em meus pais. os vinte e poucos anos e a já intolerável crise do recém-abandono do hedonismo adolescente, pra abarcar as responsabilidades da vida em sociedade, da fase adulta. mas que asco, irresoluta essa adultice sisuda que mora na palavra, um ranço habitando as bordas semânticas.

sou hoje muito mais apavorado com esses valores vazios que têm pernas e calculam e falam ao celular e me cercam de concretos desejos por todos os lados, mas agora sorrio na quietude da paz periférica à loucura de buzinas e cifrões lá de fora. assim estou, assim me faço feliz, assim medito e me encontro na desconexão, assim volto a tentar escrever pra quê.

21.3.09

De quantas peles se reveste um instante

Muitas coisas acontecem em curtos espaços de tempo; se decompusermos insistentemente aquilo que chamamos de “experiência”, chegaremos a um ponto em que a faísca de um instante é o suficiente pra combustão daquela coisa inominável , cuja junção incessante ao longo dos segundos, minutos, horas e dias e meses nos confere a bela bagagem de vivências.

Isto significa que os dias que correram entre a última postagem e esta são incontáveis na subjetividade de quem os viveu; nem eu, nem quem me lê conseguiria exprimir o significado total de mais do que um instante.

A vida aqui tem estado mágica, um pouco mais do que era antes de vir, sobretudo porque nova. O diferente, o inexplorado tem essa capacidade de nos atrair, como um gatinho a objetos curiosos. Falando nisso, gatos são minha constante companhia aqui em casa: são dois, um todo pretinho com olhos amarelos – Nosferatu -, e a outra toda branquinha de olhos bem azuis – Fiona. Bebês ainda, enchem o saco às vezes. O mais interessante é a personalidade que já lhes cabe a cada um: Fiona extremamente carinhosa, quer colo, se esfrega na mão até ela começar a acarinhar seu pescoço, até pula em cima de você, se agarrando à sua calça (ou à sua pele, uuui)  com as unhas;  Nosferatu mais na dele, gosta de ficar na janela espiando a vida lá fora, brincar sozinhamente  com algum pedacinho de papel ou dormitar em cima da geladeira (acho que porque quentinha e distante do contato humano).

Enfim, escrevo da sala, cujas paredes brancas estéreis engolem qualquer manifestação orgânica, e ao mesmo tempo contrastam com a sentimentalidade (pós-moderna) de uma mesa japonesa de jantar, em madeira preta. Falando em moda nipônica, aqui tenho tornado hábito algo que era hobby esporádico: comer de hashi, e naquelas cumbuquinhas. É ótimo comer salada assim também, descobri. Fica mais mágico.

Fazer compras revelou-se também um hábito gostoso, e vou aos poucos descobrindo pequenas bênçãos como o tiozinho que vende frutas e legumes a preços de banana (com o perdão do trocadilho), logo em frente à narizempinadice do Pão de Açúcar careiro (sim, descobri que essa rede de supermercados é paulista – haha!),  a padaria que vende alfajor de fabricação própria a um real (descoberta do Pedro), dentre outras coisinhas.

Hoje foi mais um dia cultural: fui à Pinacoteca com o Rodrigo, que veio pro show do Radiohead. Antes passamos na Galeria do Rock e fiquei de voltar pra comprar umas blusas das mais fofas que já vi, super baratinhas. Tudo rendeu fotos, porque tudo rende fotos por aqui, não sei se por conta da minha ainda turistagem ou porque as coisas pedem mais pra serem relembradas... talvez uma junção de ambas as coisas.

Legal também constatar que Sampa é trânsito de cariocas: a cada momento recebo a notícia de algum amigo ou conhecido do Rio que vem pra cá. Assim é bom que curo as saudades e os momentos de solidão, mas até que não tenho dado muito espaço a isso por enquanto. Até na casa antropofágica desmobiliada eu encontro um conforto distorcido, sabe-se lá.

Noitinha de sábado agora e muitos planos na cabeça, muitos projetinhos e projetões no papel-rascunho do pensamento, muita fertilidade nas ligações neuronais. E, coroando a minha “velhice”, recolho-me ao chazinho e às leituras enquanto a cidade pira lá fora da janela, recendendo levemente a poluição, jantares, vinhos, férias, roupa lavada, cigarros, sais de banho, incenso... rock’n’roll, balada, tunts-tunts, augusta, cerveja, punks, skinheads, gays... tudo isso são nuances que confluem, fervilham e convidam ao mesmo tempo à participação e à contemplação. Por hoje, contemplo.

3.3.09

Dos nomadismos acadêmicos e doutros desvios constantes

Parecia que a vida era de outra pessoa. Mas ao mesmo tempo eu me sentia real; ouso dizer que nunca havia me sentido tão real assim. Porque era novo. O que me rodeava era inexplorado, pelo menos na instâncias a que chego agora. Pisei no asfalto com a fome do leitor que vira a página, os olhos em busca do novo capítulo.

O que vem a ser eu não sei, e prefiro assim. O desenrolar das coisas é mais interessante se captado nos instantes em que acontece, e não premeditado maquiavelicamente. É claro que algum plano deve haver, mas o que digo é que a graça das coisas está em também aprender a contemplar os processos. E o hoje foi prova disso. Talvez o ontem também o tenha sido. Muito do que eu tenho é graças ao que não fiz. Muitas das minhas conquistas foram graças ao que não busquei. Mas não por ser passivo diante das coisas, e sim por ser paciente e saber deixar fluir.

É estranho tornar-se adulto de um dia pro outro. Um tanto incômodo pensar-se longe das referências de antes, sentir o peso das responsabilidades e perceber o quão arriscado um simples passo pode ser, quando não há ninguém pra dar a mão. Mas é um risco que eu tenho sede de correr, e força pra arcar.

Meu primeiro dia em São Paulo. Muita coisa interessante aconteceu, e conheci algumas pessoas que sei serão influentes nos cursos que minha vida deve tomar. Algumas oportunidades incrivelmente já surgiram. E, por fim, a conclusão a que inevitavelmente chego, após breve análise das confluências que insurgem dessa minha mania de alfuir, é a de que meu nomadismo me rende, a contraponto, um foco, uma síntese que universaliza qualquer vivência.

Hoje eu acho que vou dormir bem, como há muito tempo não durmo. :}

24.2.09

Sampa

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

[Caetano Veloso - Sampa]